domingo, 23 de junho de 2013

Cidinha Campos: "Nunca o ouvi falar mal do povo"

Cidinha Campos:  “Ele era um ser humano extraordinário”
Tive o privilégio de conviver com Brizola desde 1982. No nosso primeiro encontro, durante uma entrevista na rádio em que eu trabalhava -, ele ainda era candidato à primeira eleição direta para o governo do Rio, depois da Anistia. Política era assunto proibido. O candidato podia, apenas, falar da sua vida. Ele falou. Foi contando, pausada e serenamente, a sua história. E quanta história, quanta vida ele tinha pra contar. Naquele dia, me dei conta, de que o Diabo não era feio como pintavam. E mais: era um ser humano extraordinário, como eu nunca tinha visto, antes e como ainda não vi, depois.
Descobri, com a convivência, porque ele tinha sido o saco de pancada preferencial da ditadura e da imprensa. Brizola não respeitava as regras do jogo que a política combina com as classes dominantes. No Rio Grande do Sul, executou o primeiro projeto de reforma agrária do Brasil. Construindo milhares de escolas e implantando um projeto educacional de base, fez com que o seu estado tenha, até hoje, o mais elevado índice de alfabetização de todo o país. E teve coragem de encampar a multinacional Bond & Share. Cuidar da educação do povo, distribuir a terra improdutiva e defender a economia nacional colocaram Brizola na alça de mira da elite brasileira. E ela, como sabemos, não nega fogo.
Nas duas vezes em que governou o Rio, não foi diferente. Seu projeto educacional foi violentamente bombardeado. Não era possível gastar tanto dinheiro com escola de pobre. A direita venceu a batalha e os milhares de troféus pela vitória foram divididos entre todos nós: estão nas ruas, à deriva, sem carinho, sem instrução, cheirando cola, pedindo esmola, matando e sendo mortos.
Nesses vinte e dois anos, tivemos algumas discordâncias. Os estopins de nossos temperamentos entravam em combustão e não conseguíamos superar as diferenças. Mas, cada vez que a gente brigava mais se gostava, principalmente porque a admiração imensa que sentia por ele mantinha-se imune a qualquer contratempo. A volta era sempre calorosa.
 Daquele seu jeito de que sinto tanta falta ele dizia: "Cidinha, nós somos feitos de madeira de lei. Quando se atrita, sai faísca".
Era um homem de muitas qualidades. Uma delas me chamava a atenção. Nunca o ouvi falar mal do povo. Quando perdia uma eleição, afirmava: "O povo está certo, nós é que não soubemos entender sua mensagem. É o processo social, o povo sabe o que faz". Às vezes em que estive com ele, no Palácio Guanabara, deparei-me com um governante que dispensava o conforto e as facilidades do cargo. Seu gabinete era quase franciscano. Não se inebriava com o luxo que a República herdou do Império. Muito diferente desses que andam, hoje, por aí, voando alto e caro...
Na intimidade, era engraçado e divertido. Grande contador de "causos" e um frasista de rara inspiração. Distinguia-se no tratamento que dispensava às mulheres: um cavalheiro. Extremamente gentil, atento e educado. Caminhava à vontade pelas ruas. Para nós, companheiros de Partido, ele era o "doutor", o "governador". Na calçada, o que se ouvia era "Fala, Brizola", "Dá-lhe, Brizola"! E ele respondia a todos, sorrindo, abraçando e sendo abraçado. Quem não o conhecesse não diria que ali estava um dos mais destacados líderes da Internacional Socialista e o político brasileiro mais importante da última metade do século passado e dos primeiros anos deste XXI.
Era singelo o sonho de Brizola: em um país rico como o nosso, é inadmissível que o povo viva na miséria, ignorante, doente e desempregado. Para realizá-lo era preciso mudar o rumo da História. Ele lutou por isso até seu último instante. Esta foi a herança que nos deixou. Tomara que sejamos dignos dela.
(Depoimento em 2005)

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Médico Clínico e Sanitarista - Doutor em Saúde Pública - Coronel Reformado do Quadro de Dentistas do Exército. Autor dos livros "Sistemismo Ecológico Cibernético", "Sistemas, Ambiente e Mecanismos de Controle" e da Tese de Livre-Docência: "Profilaxia dos Acidentes de Trânsito" - Professor Adjunto IV da Faculdade de Medicina (UFF) - Disciplinas: Epidemiologia, Saúde Comunitária e Sistemas de Saúde. Professor Titular de Metodologia da Pesquisa Científica - Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO). Presidete do Diretório Acadêmico da Faculdade Fluminense de Odontologia. Fundador do PDT, ao lado de Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Carlos Lupi, Wilson Fadul, Maria José Latgé, Eduardo Azeredo Costa, Alceu Colares, Trajano Ribeiro, Eduardo Chuy, Rosalda Paim e outros. Ex-Membro do Diretório Regional do PDT/RJ. Fundador do Movimento Verde do PDT/RJ. Foi Diretor-Geral do Departamento Geral de Higiene e Vigilância Sanitária, da Secretaria de Estado de Saúde e Higiene/RJ, durante todo o primeiro mandato do Governador Brizola.