Conhecer para conservar: o lado ambientalista de um mecenas carioca
- segunda-feira, 09 novembro 2015 18:57
Corre o ano de 2015. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
comemora 450 anos de sua fundação. A data é auspiciosa para recordar o
nome de um de seus mais prodigiosos filhos: Raymundo de Otonni Castro
Maya, que entre outras funções, em 1965, coordenou as comemorações do
Quarto centenário da Cidade Maravilhosa. Não é esse lado de Castro Maya,
contudo, que queremos aqui ressaltar, mas sim sua veia
conservacionista.
O que hoje conhecemos por movimento ambientalista é, na verdade, a
soma de várias escolas de preservação que nasceram de diferentes
necessidades e anseios de conservar a natureza ao longo da História. As
iniciativas mais antigas de conservação de que se tem notícia no mundo
ocidental em geral visavam a assegurar recursos hídricos para as cidades
romanas. Exemplo paradigmático é a Floresta de Belgrado, criada em
meados do primeiro milênio em Constantinopla para proteger os mananciais
da então capital do Império Romano do Leste, maior potência da época.
Mais tarde, à medida que a agricultura e a retirada de madeira para
aquecimento, cozinha e construção civil foram desnudando a Europa,
algumas reservas ganharam cercas para proporcionar a sobrevivência de
animais de caça, esporte predileto da nobreza. Paradoxalmente, o gosto
pelo abate de animais selvagens foi o que permitiu a sobrevivência de
várias espécies de mamíferos na Europa. Também, em muitos países, foram
decretadas regras e interdições para assegurar a preservação de árvores
cujos caules fossem usados na construção naval. No Brasil, com esse
objetivo, o Governo colonial protegeu diversas espécies que, em seu
conjunto, acabaram por ficar conhecidas como “madeira de lei”.
Outros usos como o religioso e a coleta de ervas medicinais também
ajudaram a proteger nacos de terra. Em Portugal encontramos a Floresta
Nacional do Buçaco, que foi replantada a partir de 1628 por monges
carmelitas. O reflorestamento deu certo e a mata começou a atrair
peregrinos que iam pedir as bênçãos de Deus. Para proteger o sítio
sagrado, em 1643 o papa Urbano VIII decretou a excomunhão sumária de
qualquer cristão flagrado impactando a reserva do Buçaco. Já em Malta,
um ilhote foi declarado área protegida em 1746, para impedir a coleta
descontrolada de um fungo que só crescia ali e que tinha propriedades
medicinais.
Somente no século XIX ganha força a ideia de se proteger áreas
naturais para a recreação e contemplação. Seu principal defensor foi
John Muir, um escocês educado nos Estados Unidos. É essa corrente de
pensamento a principal força por trás da criação dos parques nacionais,
tipo de área protegida destinado à conservação do meio ambiente com o
objetivo primordial de proporcionar o desfrute da natureza, por meio de
visitas e passeios.
Raymundo Ottoni de Castro Maya é um conservacionista ligado a essa
última escola de pensamento. Sua aproximação com as causas
conservacionistas não vem da ciência, de atividades comerciais, nem da
religião. Castro Maya desenvolveu seu amor pela natureza desde a
infância, que passou na residência da família no Alto da Boa Vista,
arrabalde montanhoso do Rio de Janeiro. O jardim de sua casa
confundia-se com as matas da Floresta da Tijuca. Nem cerca havia a
separar uma da outra. Nas suas brincadeiras de criança e aventuras da
puberdade, Castro Maya não conhecia limites. Bastava andar um pouquinho e
pronto: a trilha já extrapolava a propriedade e adentrava o parque.
Sua juventude coincidiu com o nascimento do montanhismo no Brasil e
com a revalorização das atividades esportivas entre as elites nacionais.
Tinha 25 anos de idade em 1919, quando foi fundado o Centro Excursionista Brasileiro,
mais antigo clube de montanhismo do país. Em seus longos passeios a pé
ou a cavalo pelas matas da Tijuca, Castro Maya entrou em contato com a
fina flor da juventude Fluminense, que exercia os prazeres do
excursionismo, a mais nova moda da capital da República, rivalizando em
popularidade com o remo e o futebol. Nesse contato foi se formando o
conservacionista.
Era uma época em que a Floresta estava associada às elites que
moravam na então Capital Federal. A Tijuca era a jóia da Cidade
Maravilhosa, exibida com orgulho para todos os visitantes ilustres,
fossem políticos, cientistas ou literatos: quando o rei da Bélgica,
Alberto, visitou o Rio de Janeiro em 1920, foi logo levado à Floresta da
Tijuca. O mesmo sucedeu com Albert Einstein, em 1925, e com Rudyard
Kippling, em 1927, para citar apenas alguns.
Filho de uma família de intelectuais, Castro Maya se beneficiou da
vasta biblioteca que seu pai mantinha em casa e que depois foi muito
avolumada pelo próprio Raymundo. Leu avidamente os viajantes como John
Luccock, Spix e von Martius, Rugendas, Wilhelm Theremin, o príncipe
Maximiliano Wied-Neuwied, Jacques Arago e Maria Graham entre outros.
Eram relatos de europeus impressionados com a exuberância da floresta
tropical do Rio de Janeiro. Teciam elogios à sua incomparável beleza,
seu fascinante verdor, sua inesgotável variedade de espécies. Alguns,
como Luccock, já alertavam para o precoce desmatamento das matas da
então capital do Império brasileiro.
Sua personalidade multifacetada, entretanto, não ficava por aí.
Castro Maya era um atleta habilidoso. Competiu pelo Fluminense, time
para o qual torcia fervorosamente, cujas cores defendeu no atletismo e
onde socializou com os Guinle, os Cox, os Coelho Netto entre outros
intelectuais e capitães de indústria daquele tempo. Aprendeu muito nas
longas conversas e no convívio social. Por outro lado, sua paixão pelas
artes o pôs em contato com gente do calibre de Cândido Portinari, José
Olympio, Burle Marx, José Mindlin e Jean Manzon. Foi amigo de Roberto
Marinho, com quem compartilhou os prazeres da caça submarina e da pesca
desportiva, passando a ser assíduo frequentador de Arraial do Cabo.
Seja por que pertencia à elite da época, em cujas conversas e eventos
sociais a questão da preservação da natureza começava a ser debatida
com alguma profundidade, seja porque tinha o amor pela natureza próprio
daqueles que a frequentam, Castro Maya foi aos poucos despertando sua
veia conservacionista.
Em 1934, realizou-se no Rio de Janeiro a primeira Conferência
Brasileira de Proteção à Natureza, trazendo o tema para o centro da
pauta nacional. Um dos maiores resultados palpáveis dessa Conferência
foi a criação dos três primeiros parques nacionais do Brasil: Itatiaia, em 1937, e Serra dos Órgãos e Iguaçu,
em 1939. Participou das discussões em torno da Conferência gente que
frequentava os mesmos círculos que Castro Maya, como o jornalista
Armando Magalhães Corrêa (que desbravou a Pedra Branca) e a bióloga
Bertha Lutz (que era habituée da Serra da Bocaina). Assim como
eles, Raymundo aliava erudição interdisciplinar ao prazer de frequentar
as belezas naturais do Rio de Janeiro. Foi logo atraído para o debate da
conservação no Brasil. Para entender melhor o que se discutia e qual
era o objetivo final do manejo de unidades de conservação, passou a
incluir em suas viagens ao estrangeiro extensas excursões a parques nacionais.
Dedicou então alguns anos a visitas aos parques da Argentina, dos
Estados Unidos e Canadá. Gostou do que viu e, em 1936, comprou a Fazenda
Cachoeira Dourada em Goiás, onde fez alguns experimentos em
administração de uma propriedade com a natureza em seu estado mais
conservado.
Em 1938, teve a primeira oportunidade de colocar em prática o que
aprendera. A convite do governo, participou da equipe que redigiu o
Código de Pesca Brasileiro. A peça legal foi pioneira em exigir que
novas barragens deveriam ter “obras que permitam a conservação da fauna
fluvial, facilitando a passagem dos peixes” além de outros artigos de
cunho conservacionista.
Em 1943, quando foi convidado para dirigir a Floresta da Tijuca, já
tinha sólidos conhecimentos da gestão e do manejo de unidades de
conservação, que foram postos em prática em combinação com os contatos
que tinha na alta sociedade, sobretudo nas áreas política e artística, e
com os recursos financeiros de seu próprio patrimônio, que ele aportou
ao Parque. Portanto, não é de surpreender que o período que passou à
frente de sua administração, embora tenha durado apenas cerca de três
anos, tenha entrado para a história da Floresta da Tijuca.
Atualizado com o que havia de mais moderno na área ambiental em sua
época, Castro Maya sonhava em transformar a Tijuca em um parque nacional
nos moldes do que vira in loco no exterior, ou como ele mesmo
escreveu: “uma amostra de um parque nacional [...]. Naturalmente era uma
miniatura do que se poderia fazer em todo o país, aproveitando as
belezas naturais e defendendo-as da “civilização que entra com o machado
devastador, derrubando as matas e aproveitando o húmus da terra para
pouco depois abandoná-la”[1].
Para transformar a Tijuca nessa “miniatura de parque nacional”[2],
Castro Maya relegou suas empresas a um segundo plano, dedicando a maior
parte de seu tempo à Floresta. Emulou alguns amigos com quem convivera.
De João Coelho Netto, o Preguinho, copiou a recusa de receber salário,
aceitando dirigir a Floresta em troca de um cruzeiro por ano[3].
De Rockefeller, cuja amizade prezava muito, copiou o mecenato de que a
história tradicional registrou principalmente a parte artística. Poucos
sabem que a família Rockefeller, muitas vezes anonimamente, adquiriu e
doou extensas áreas para os parques nacionais de Grand
Teton, Acadia, Great Smoky Mountains, Yosemite e Shenandoa. Sem a
riqueza inesgotável dos Rockefeller, mas com generosidade comparável,
Castro Maya não dividiu seus esforços e dedicou-se a fazer da Tijuca um
verdadeiro parque nacional.
E o fez com maestria. A Tijuca que Castro Maya nos legou é um parque
nacional no sentido estrito do termo e da definição. Não é apenas uma
reserva hermeticamente fechada ao público, destinada somente à pesquisa e
à preservação. Castro Maya compartilhava a visão de John Muir de que os
parques nacionais têm o objetivo primordial de manter a ligação atávica
do homem com a natureza. Acreditava que só essa ligação poderia gerar
um grupo de conservacionistas dedicados.
Sua gestão valorizou o meio ambiente na mesma medida em que investiu
na infra-estrutura de ecoturismo, conforme relata em detalhes na
presente obra.
Suas ideias são hoje comuns no mundo inteiro. Existe até um mantra
criado para representá-las: “conhecer para conservar”. Infelizmente,
contudo, mesmo no Brasil de hoje Castro Maya provavelmente ainda não
seria visto com bons olhos pelos dirigentes das instituições que zelam
por nossos parques onde, com poucas excessões, quase não existe
infra-estrutura turística e a visitação não é prioridade.
Que esperar então de seus antecessores há 50 anos? Castro Maya
transformou a Tijuca no parque mais bem estruturado do Brasil, o que
ainda é em nossos dias. Paradoxalmente, foi essa visão moderna e bem
implementada que impediu que um parque nacional de fato como era a
Floresta não ganhasse o título a que fazia jus. Como mesmo relatou
Castro Maya, “em vez de encontrar receptividade entre os representantes
do Serviço Florestal, foi justamente ali que esbarrei em sistemática
oposição”.
Seu sonho de transformar a Floresta da Tijuca em Parque Nacional
não se realizou durante sua gestão. A exoneração de Castro Maya,
entretanto, não foi capaz de ofuscar seu trabalho nem seus ideais. Nos
anos que se seguiram, intensificou-se a pressão para que a Floresta
fosse elevada à categoria de parque, o que finalmente ocorreu no
centenário do reflorestamento, em 1961. Inicialmente, chamou-se Parque
Nacional do Rio de Janeiro, já que, além da Tijuca, abarcava as Pedras
da Gávea e Bonita, a Serra da Carioca e as chamadas florestas do Andaraí
e da Covanca.
O legado do industrial para a conservação, entretanto, não se resume à
sua gestão da Floresta da Tijuca, nem às suas ideias arrojadas. Em
1963, Castro Maya doou ao usufruto público sua propriedade do Açude com a
mata adjacente de 151.132m². Embora essa reserva seja hoje administrada
pelo Instituto Brasileiro de Museus, ela é contígua ao Parque Nacional
da Tijuca ao qual se une por meio da Trilha Transcarioca.
Com efeito, não há divisória física entre a antiga residência de
Castro Maya e a Floresta da Tijuca. São de fato uma só floresta pública,
cuja história é comum e cujos destinos são indissociáveis. Que esse
legado sirva de tributo a um dos maiores – e menos reconhecidos –
conservacionistas da história do Brasil e que continue recebendo
visitantes de braços abertos para ajudar a formar uma consciência
ecológica conducente a que um dia finalmente, como reclamava Castro
Maya, “os parques nacionais brasileiros deixem de serem áreas reservadas
sem atrativos turísticos, e neles se observem medidas de defesa da
fauna e da flora, cuja preservação é o motivo de sua existência”[4].
Notas: [1] Castro Maya, Raymundo Ottoni de. 1967. A Floresta da Tijuca. Rio de Janeiro: Bloch. [2] Idem. [3] Quando o profissionalismo foi introduzido no futebol carioca, Preguinho recusou-se a receber salário, passando a defender o Fluminense Football Club por um valor simbólico. [4] Idem.
"Somente
no século XIX ganha força a ideia de se proteger áreas naturais para a
recreação e contemplação. Seu principal defensor foi John Muir, um
escocês educado nos Estados Unidos."
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"(...)
quando o rei da Bélgica, Alberto, visitou o Rio de Janeiro em 1920, foi
logo levado à Floresta da Tijuca. O mesmo sucedeu com Albert Einstein,
em 1925, e com Rudyard Kippling, em 1927."
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"Atualizado
com o que havia de mais moderno na área ambiental em sua época, Castro
Maya sonhava em transformar a Tijuca em um parque nacional nos moldes do
que vira in loco no exterior"
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"Castro
Maya compartilhava a visão de John Muir de que os parques nacionais têm
o objetivo primordial de manter a ligação atávica do homem com a
natureza."
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"Seu
sonho de transformar a Floresta da Tijuca em parque nacional não se
realizou durante sua gestão. A exoneração de Castro Maya, entretanto,
não foi capaz de ofuscar seu trabalho nem seus ideais"
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Notas: [1] Castro Maya, Raymundo Ottoni de. 1967. A Floresta da Tijuca. Rio de Janeiro: Bloch. [2] Idem. [3] Quando o profissionalismo foi introduzido no futebol carioca, Preguinho recusou-se a receber salário, passando a defender o Fluminense Football Club por um valor simbólico. [4] Idem.
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